| 1. A EMOÇÃO ESTÉTICA NA ARTE MODERNA                                       por GRAÇA ARANHA   Conferência com que Graça Aranha inaugurou a Semana de  Arte Moderna no Teatro Municipal de São Paulo, em 13 de fevereiro de 1922. Está  publicada em Espírito Moderno. São Paulo: Monteiro Lobato, 1925.   Texto extraído do livro:  TELES, Gilberto Mendonça.  Vanguarda europeia & Modernismo  brasileiro.   Apresentação e crítica dos  principais manifestos vanguardistas.  21ª.  edição.  Rio de Janeiro: José Olimpio,  2022.   658 p.    ISBN 978-85-5547-069-4             Ex. bibl. Antonio Miranda
         Para  muitos de vós a curiosa e sugestiva exposição que gloriosamente inauguramos  hoje é uma aglomeração de “horrores”. Aquele Gênio supliciado, aquele homem  amarelo, aquele carnaval alucinante, aquela paisagem invertida, se não são  jogos de fantasia de artistas zombeteiros, são seguramente desvairadas  interpretações da natureza e da vida.   Não está terminado o vosso espanto. Outros “horrores” vos esperam. Daqui  a pouco, juntando-se a esta coleção de disparates, uma poesia liberta, uma  música extravagante, mas transcendente, virão revoltar aqueles que reagem  movidos pelas forças do Passado. Para estes retardatários a arte ainda é o Belo.
 Nenhum  preconceito é mais perturbador à concepção da arte que o da Beleza. Os que  imaginam o belo abstrato são sugestionados por convenções forjadoras de  entidades e conceitos estéticos sobre os quais não pode haver uma noção exata e  definitiva.  Cada um que se interrogue a  si mesmo e responda que é a beleza? Onde repousa o critério do belo?  A arte é independente deste preconceito. É  outra maravilha que não é a beleza. É a realização de nossa integração no  Cosmos pelas emoções derivadas dos nossos sentidos, vagos e indefiníveis  sentimentos que nos vêm das formas, dos sons, das cores, dos tatos, dos sabores  e nos levam à unidade suprema com o Todo Universal.  Por ela sentimos o universo, que a ciência  decompões e nos faz somente conhecer pelos seus fenômenos. Por que uma forma,  uma linha, um som, uma cor nos comovem, nos exaltam e transportam ao universal?  Eis o mistério da arte, insolúvel em todos os tempos, porque a arte é eterna e  o homem é por excelência o anima artista. O sentimento religioso pode se  trasmudado, mas o senso estético permanece inextinguível, como o Amor, seu  irmão imortal. O universo e os seus fragmentos são sempre designados por  metáforas e analogias, que fazem imagens.   Ora, esta função intrínseca do espírito humano mostra como a função  estética, que é a de idear e imaginar, é essencial à nossa natureza.
         A  emoção geradora da arte ou a que esta nos transmite é tanto mais funda, mais  universal, quanto mais artista for o homem, seu criador, seu intérprete ou  espectador.  Cada arte nos deve comover  pelos seus meios diretos de expressão e por eles nos arrebatar ao Infinito.A  pintura nos exaltará, não pela anedota, que por acaso ela procure representar,  mas principalmente pelos sentimentos vagos e inevitáveis que nos vêm da forma e  da cor.
          Que importa que o homem amarelo ou a  paisagem louca, ou o Gênio angustiado não sejam o que se chama  convencionalmente reais? O que nos interessa é a emoção que nos vem daquelas  cores intensas e surpreendentes, daquelas formas estranhas, inspiradoras de  imagens e que nos traduzem o sentimento patético ou satírico do artista. Que  nos importa que a música transcendente que vamos ouvir não seja realizada  segundo as fórmulas consagradas? O que nos interessa é a transfiguração de nós  mesmos pela magia do som, que exprimirá a arte do músico divino.  É na essência da arte que está a Arte.  É no sentimento vago do Infinito que está a  soberana emoção artística derivada do som, da forma e da cor. Para o artista a  natureza é uma “fuga” perene no Tempo imaginário.  Enquanto para os outros a natureza é fixa e  eterna, para ele tudo passa e a Arte é a representação dessa transformação  incessante.  Transmitir por ela as vagas  emoções absolutas vindas dos sentidos e realizar nesta emoção estética a  unidade com o Todo é a suprema alegria do Espírito.
 Se  a Arte é inseparável do homem, se cada um de nós é um artista mesmo rudimentar,  porque é um criador de imagens e formas subjetivas, a Arte nas suas manifestações  recebe a influência da cultura do espírito humano.
         Toda  a manifestação estética é sempre precedida de um movimento de ideias gerais, de  um impulso filosófico, e a Filosofia se faz Arte para se tornar Vida. Na  Antiguidade Clássica o surto da arquitetura e da escultura se deve não somente  ao meio, ao tempo e à raça, mas principalmente à cultura matemática, que era  exclusiva e determinou a ascendência dessas artes da linha e do volume. A  própria pintura dessas épocas é um acentuado reflexo da escultura.  No Renascimento, em seguida à perquirição  analítica da alma humana, que foi a atividade predominante da Idade Média, o  humanismo inspirou  a magnífica floração  da pintura, que na figura humana procurou exprimir o mistério das almas.  Foi depois da filosofia natural do século  XVII que o movimento panteístico se estendeu à Arte e à Literatura e deu à  Natureza a personificação que raia na poesia e na pintura da paisagem. Rodin  não teria sido o inovador, que foi na escultura, se não tivesse havido a  precedência da biologia de Lamarck e Darwin.   O homem de Rodin é o antropoide aperfeiçoado.
 E eis chegado o grande enigma que é o de precisar as origens da sensibilidade  na arte moderna. Esse supremo movimento artístico se caracteriza pelo mais  livre e fecundo subjetivismo. É uma resultante do extremado individualismo que  vem vindo na vaga do tempo há quase dois séculos até se espraiar em nossa  época, de que é feição avassaladora.
 
 Desde  Rousseau o indivíduo é a base da estrutura social. A sociedade é um ato livre da  vontade humana.  E  por este conceito se marca a ascendência  filosófica de Condillac e da sua escola.   O individualismo frema na Revolução Francesa e mais tarde no romantismo  e na revolução social de 1848, mas a sua libertação não é definitiva. Esta só  veio quando o darwinismo triunfante desencadeou o espírito humano das suas  pretendidas origens divinas e revelou o fundo da natureza e as suas tramas  inexoráveis.  O espírito do homem neste  insondável abismo e procurou a essência das coisas. O subjetivismo mais livre e  desencantado germinou em tudo. Cada homem é um pensamento independente, cada  artista exprimirá livremente, sem compromissos, a sua interpretação da vida; a  emoção estética que vem dos seus contatos com a natureza. É toda a magia  interior do espírito que se traduz na poesia, na música e nas artes plásticas.  Cada um se julga livre de criar e manifestar o seu sonho, a sua fantasia íntima  desencadeada de toda a regra, de toda a sanção.   O cânon e a lei são substituídas pela liberdade absoluta que nos revela,  por entre mil extravagâncias, maravilhas que só a liberdade sabe gerar. Ninguém  pode dizer com segurança onde o erro e a loucura na arte, que é a expressão do  estranho mundo subjetivo do homem. O nosso julgamento está subordinado aos  nossos variáveis preconceitos.  O gênio  se manifestará livremente, e esta independência é uma magnífica fatalidade e  contra ela não prevalecerão as academias, as escolas, as arbitrárias regras do  nefando bom gosto e do infecundo bom senso. Temos que aceitar como uma força  inexorável a arte libertada. A nossa atividade espiritual se limitará a sentir  na arte moderna a essência da arte, aquelas emoções vagas transmitidas pelos  sentidos e que levam o nosso espírito a se fundir ano Todo infinito.
 
 Este  subjetivismo é tão livre que, pela vontade independente do artista, se torna no  mais desinteressado objetivismo, em que desaparece  a determinação psicológica. Seria a pintura  de Cézanne, a música de Stravinsky reagindo contra o lirismo psicológicos e  Debussy procurando, como já se observou, manifestar a própria vida do objeto no  mais rico dinamismo, que se passa nas coisas e na emoção do artista.
 
 Esta  talvez seja a acentuação da moda, porque nesta arte moderna também há a vaga da  moda, que até certo ponto é uma privação da liberdade. A tirania da moda  declara Debussy envelheci e sorri do seu subjetivismo transcendente, a tirania  da interpretação construtiva da natureza pondo-se em íntima correlação com a  vida moderna na sua expressão mais real e desabusada.  O intelectualismo é substituído pelo objetivismo  direto, que, levado ao excesso, transbordará do cubismo no dadaísmo. Há uma  espécie de jogo divertido e perigoso, e por isso sedutor, da arte que zomba da  própria arte.  Desta zombaria está  impregnada a música moderna que na França se manifesta no sarcasmo de Eric  Satie e que o grupo dos “seis” organiza em atitude.  Nem sempre a fatura desse grupo é homogênea,  porque cada um dos artistas obedece fatalmente aos impulsos misteriosos do seu  próprio temperamento, e assim mais uma vez se confirma a característica da arte  moderna que é a do mais livre subjetivismo.
 
 É  prodigioso como as qualidades fundamentais da raça persistem nos poetas e nos  outros artistas. No Brasil, no fundo de toda a poesia, memo liberta, jaz aquela  porção de tristeza, aquela nostalgia irremediável, que é o substrato do nosso  lirismo. É verdade que há um esforço de libertação dessa melancolia racial, e a  poesia se desforra na amargura do humorismo, que é uma expressão de  desencantamento, um permanente sarcaso contra o que é e não devia ser, quase  uma arte de vencidos.  Reclamemos contra  essa arte imitativa e voluntária que dá ao nosso “modernismo” uma feição artificial.  Louvemos aqueles poetas que se libertam pelos seus próprios meios e cuja força  de ascensão lhes é intrínseca.  Muitos  deles se deixaram vencer pela morbidez nostálgica ou pela amargura da farsa,  mas num certo instante o toque da revelação lhes chegou e ei-los livres,  alegres, senhores da matéria universal que tornam em matéria poética.
 
 Destes,  libertados da tristeza, do lirismo e do formalismo, temos aqui uma plêiade.  Basta que um deles cante, será uma poesia estranha, nova, aliada e que se faz  música para ser mais poesia.  De dois  deles, nesta promissora noite, ouvireis as derradeiras “imaginações”.  Um é Guilherme de Almeida, o poeta de  “Messidor”, cujo lirismo se destila sutil e fresco de uma longínqua e vaga  nostalgia de amor, de sonho e de esperança, e que, sorrindo, se evola da longa  e doce tristeza de nos dar na Canções Gregas a magia de uma poesia mais livre  do que a Arte.  O outro é Ronald de  Carvalho, o poeta da epopeia da “Luz Gloriosa” em que todo o dinamismo  brasileiro se manifesta em uma fantasia de cores, de sons e de formas vivas e  ardentes, maravilhoso jogo de sol que se torna poesia! A sua arte naus aérea  agora, nos novos epigramas, não definha no frívolo virtuosismo que é o folguedo  do artista. Ela vem da nossa alma, perdida no assombro do mundo, e é a vitória  da cultura sobre o terror, e nos leva pela emoção de um verso, de uma imagem,  de uma palavra, de um som à fusão do nosso ser no Todo infinito.
 
 A  remodelação estética do Brasil iniciada na música de Villa-Lobos, na escultura  de Brecheret, na pintura de Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Vicente do       Rego Monteiro, Zina Aita, e na jovem e  ousada poesia, será a libertação da arte dos perigos que a ameaçam do  inoportuno  arcadismos, do academicismo e  do provincialismo.
 O regionalismo ode ser um  material literário, mas não o fim de uma literatura nacional aspirando ao  universal.  O estilo clássico obedece a  uma disciplina que paira sobre as coisas e não as possui.
 Ora,  tudo aquilo em que o Universo se fragmenta é nosso, são os mil aspectos do  Todo, que a arte tem que recompor para lhes dar a unidade absoluta.  Uma vibração íntima e intensa anima o artista  neste mundo paradoxal que é o Universos brasileiro, e ela não se pode  desenvolver nas formas rija do arcadismo, que é o sarcófago do passado.  Também o academicismo é a morte  pelo frio da arte e da literatura.
 Ignoro  como justificar a função social da Academia. O que se pode afirmar para condená-la  é que ela suscita o estilo acadêmico, constrange a livre inspiração, refreia o  jovem e árdego talento que deixa de ser independente para se vazar no molde da  Academia.  É um grande mal na renovação  estética do Brasil e nenhum benefício trará à língua esse espírito acadêmico,  que mata ao nascer a originalidade profunda e tumultuária da nossa “floresta”  de vocábulos, frase e ideias.  Ah! se os  nossos escritores não pensassem na Academia, se eles por sua vez a matassem em  suas almas, que descortino imenso para o magnífico surto de gênio, enfim  liberto de mais esse terror.  Esse  “academismo” não é só dominante na literatura.   Também se estende às artes plástica e à música.  Por ele tudo o que a nossa vida oferece de  enorme, de esplêndido, de imortal, se torna medíocre e triste.
 Onde  a nossa grande pintura, a nossa escultura e a nossa música, que não devia  esperar a magia da arte de Villa-Lobos para ser a mais sincera expressão do  nosso espírito divagando no nosso fabuloso mundo tropical?  E, no entanto, eia a paisagem brasileira. É  constituída como uma arquitetura, são planos, volumes, massas.  A própria cor da terra é uma profundidade, os  vastos horizontes absorvem a céu e dão a perspectiva do infinito. Como ela  provoca a transposição pela arte, que lhe dê no máximo realismo a mais alta  idealidade! Eis as nossas gentes.  Saem  das flores ou do mar. São os filhos da terra, móveis, ágeis como os animais  cheios de pavor, sempre em desafio do perigo, e, no impulso do sonho,  alucinados pela imaginação, caminhando pela terra na ânsia de conhecer e  possuir.  Onde a arte que transfigurou  genialmente essa perpétua mobilidade, essa progressão infinita da alma  brasileira?
 Da  libertação do nosso espírito sairá a arte vitoriosa. E os primeiros anúncios de  nossa esperança são os que oferecemos aqui à vossa curiosidade. São estas primeiras  extravagante, essas esculturas absurdas, esta música alucinada, esta poesia  aérea e desarticulada. Maravilhosa aurora! Deve-se acentuar que, exceto na  poesia, o que se fez antes disto na pintura e na música e inexistente. São  pequenas e tímidas manifestações de um temperamento artístico apavorado pela  dominação da natureza, ou são transplantações para o nosso mundo dinâmico de  melodias mofinas e lânguida, marcadas pelo metro acadêmico de outras gentes.
         O  que hoje fixamos não é a renascença de uma arte que não existe. É o próprio  comovente nascimento da arte no Brasil, e, como não temos felizmente a pérfida  sombra do passado para matar a germinação, tudo promete uma admirável “  florada” artística. E, libertos de todas as restrições, realizaremos na arte o  universo. A vida será, enfim, vivida na sua profunda realidade estética. O  próprio Amor é uma função da Arte, porque realiza aa unidade integral do Todo  infinito pela magia das formas do ser amado. No universalismo da arte estão a  sua força e a sua eternidade.  Para  sermos universais, façamos de todas as nossas sensações expressões estéticas,  que nos levem ansiada unidade cósmica. Que a arte seja fiel a si mesma, renuncie  ao particular e faça cessar por instantes a dolorosa tragédia do espírito  humano desvairado no grande exílio da separação do Todo, e nos transporte pelos  sentimentos vagos das formas, das cores, dos sons, dos tatos e dos sabores à  nossa fusão no universo.(ARANHA, Graça.   Espirito moderno. São  Paulo: Monteiro Lobato, 1925.)
 
 
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